Desde a transição dos
16 para os 32-bits, na metade da década de 90, eu ouço o mesmo mimimi de que os
jogos em 2D estão condenados, que o 3D veio pra substituir qualquer outra
perspectiva de câmera, que os polígonos são territorialistas e não aceitam dividir
espaço com nenhuma outra técnica de animação.
Deixando bem claro que
meu ponto de vista é de quem sempre jogou, majoritariamente, em consoles, eu
hei de concordar que essa transição gráfica soou meio que apressada, colocada
lá pra gerar hype em cima de um novo e mais atraente produto.
Se você já experimentou jogos
como Yoshi’s Island ou Donkey Kong Kountry 2 (ambos do SNES), provavelmente
concorda que os sprites ainda tinham muita lenha pra queimar e visuais prá lá
de satisfatórios a oferecer.
Não é uma página destacada de um livro de colorir, é um lindo jogo em 2D rodando no SNES |
Na atuação geração de
consoles, os jogos em 2D parecem ter voltado com força máxima, sob a tutela de
um nicho odiado por uns e visto por outros como a última fagulha de esperança
criativa num mar de sequências sem personalidade produzidas em ritmo industrial.
Sim, estou falando dos
“indies”, diminutivo de jogos independentes. Os indies são pequenas produções,
muitas vezes vindos ao nosso mundo por meio de sites de doação ou financiamento
de um público cansado da falta de criatividade dos chamados jogos main stream.
Desde a geração do PS2
eu procurei amadurecer como gamer, dando chance não só a jogos com visuais top
de linha, mas com uma experiência única que muitas vezes os títulos triple A
simplesmente não estão dispostos a me oferecer.
Nunca julgue uma carta pela sua arte |
E foi sob essa ótica mais holística que
eu descobri Stardew Valley, um simulador de fazenda em 2D com visuais da época
do Super Nintendo que vem pra ocupar um nicho praticamente abandonado pelas
desenvolvedoras da atualidade.
Será que o jogo
consegue compensar seus gráficos “datados” e perspectiva “ultrapassada” para entregar
uma experiência de jogo que transcenda tais detalhes técnicos?
Jogos são apenas
realismo e contagem de polígonos, ou podem vir embalados em propostas mais
modestas com o propósito de despertar sensações no jogador que não sejam o
deslumbramento por visuais ultrarrealistas? Essas e outras perguntas serão
respondidas na minha análise de Stardew Valley a seguir.
HISTÓRIA
(8,0)
Alguma vez você já se
sentiu em uma rotina que parece não ter nada a ver com o que você planejou pra
sua vida, com uma sensação de que você só trabalha pra ganhar dinheiro pra
continuar vivendo e ... trabalhando pra ganhar mais dinheiro? Já aconteceu de
parecer que sua vida não está andando pra frente ou evoluindo, e que você faz
muita questão por coisas que nem são tão importantes à completude de uma
pessoa?
E se você tivesse a
chance de deixar tudo isso pra trás e passar a levar uma vida simples no campo,
onde sua maior preocupação seria abastecer o curral dos seus animais com feno
durante o inverno, programar o plantio com as sementes adequadas para a próxima
estação ou criar coragem para chamar aquela pessoa querida pra jantar com você?
Pois é justamente
disso que trata o enredo de Stardew Valley. Apesar de se esconder por trás de uma máscara
de game despretensioso de afazeres bucólicos, ele faz uma sutil crítica social
ao nosso modo moderno de viver, mesmo que em momento algum tente passar sermão
ao jogador ou fazer julgamento de valores (mesmo quando aborda temas como consumismo ou má alimentação, por exemplo).
"Você acha que é especial, que as regras de alguma forma não se aplicam a você, Sr. Anderson"? |
As telas iniciais do
jogo mostram a rotina de trabalho de um completo estranho. Ele está atendendo
ligações no call center onde trabalha quando recebe uma carta dizendo que seu
avô faleceu. Antes de cruzar a fronteira que separa os vivos dos mortos, ele
fez um testamento e o nomeou como herdeiro de uma modesta fazenda no Vale do
Orvalho.
Modesta sim,
insuficiente jamais: a fazenda deixada pelo seu avô, apesar de não ser a maior
localidade do mapa, conta com tudo que você precisa pra sobreviver e tocar sua
vidinha no campo: uma estufa (caindo aos pedaços), um pequeno lago pra retirar
água, uma grande área para plantações e uma caverna com o potencial de abrigar
morcegos ou cogumelos fresquinhos (depende das suas escolhas ao longo da
evolução de seu personagem).
Mas nem todos os
holofotes do jogo estão voltados a sua pessoa: para os mais de vinte moradores
do pequeno vilarejo há um sub-arco a respeito de CADA um dos personagens com os
quais você pode desenvolver amizade (seja ela em preto-e-branco ou colorida). As histórias
desses personagens secundários são bem envolventes e tratam de vários temas de
relacionamento bem delicados, como solidão, problemas familiares, falta de
perspectiva de vida, a forma como outras pessoas te enxergam e etc.
Às vezes é exatamente assim que eu me sinto, vovô. |
À medida que você vai
ganhando a confiança dos moradores (por meio de favores e presentes), detalhes
de seu passado vão sendo revelados e cabe a você decidir se quer se envolver
mais ou dar meia-volta e bater na porta ao lado.
Como se trata de um
jogo de ciclos, meio que sem um final definido, é difícil dizer exatamente o
que te espera ao jogar Stardew Valley (mesmo tendo me casado, adotado um filho
e enchendo dez coraçõezinhos com uma dezena de pessoas, eu estou longe de
conhecer todos os dramas que o jogo tem a oferecer).
Só pra finalizar esse
tópico, que acaba ficando meio em aberto, é bem legal concluir as histórias
secundárias de alguns personagens (como o mago Rasmodeu) e descobrir alguns dos
motivos pelos quais um personagem te trata da maneira que trata. Também rola um
momento bem triste envolvendo o avô do nosso personagem e diamantes, mas entrar em mais
detalhe seria recair em spoiler, pecado punido com morte e decapitação aqui no
meu blog.
GRÁFICOS (8,5) E
SOM (10,0)
Dos visuais em si não
tem muito o que falar. Apesar de contar com alguns efeitos modernosos para seu
estilo visual, Stardew Valley segue o padrão de jogos da era 16-bits. É um jogo
feio por causa disso? Claro que não! As fotos capturadas no PS4 não me deixam mentir.
Algumas estações em
especial, como o outono e a primavera, são de encher os olhos, te surpreendendo
com a forma como um game “datado” visualmente pode despertar um sentimento de
contemplação que outros jogos, com contagens de polígonos na casa dos
trilhares, não conseguem chegar nem perto.
Como nem tudo são
elogios, cabem alguns queixumes que eu não sei se pertencem mesmo a esta parte
do texto, mas que preciso soltar de qualquer jeito. A interface do jogo às
vezes é meio bagunçada, com comandos se sobrepondo sobre outros (como na hora
de organizar os itens no museu de arqueologia).
O Centro Comunitário: fonte abundante de missões |
Também há um delay em
alguns comandos que irrita e atrapalha um pouco os combates. A interface de
seleção de ferramentas e itens de batalha também poderia ser melhor, cabendo ao
jogador organizar seus pertences da forma mais conveniente possível a fim de
evitar dano desnecessário por vagareza no acesso a itens de cura, por exemplo.
Eu joguei toda a minha
campanha (que ainda não terminou, diga-se de passagem) com o idioma do jogo em
português. Esse é um ponto positivo do jogo, pois todas as legendas estão
traduzidas para o português BR (a despeito da inexistência de diálogos
dublados). O problema é que o trabalho de localização parece ter sido feito por
uma equipe de estudantes que trabalham meio-período num estúdio de jogos.
Para um louco obcecado
por ortografia e espaçamento correto de texto como eu, alguns momentos com
Stardew Valley significaram uma verdadeira sessão de tortura gramatical. O resultado final
é porco e não demonstra muita preocupação com profissionalismo. O jogo chega ao
cúmulo de colocar frases repetidas na mesma caixa de diálogo, só pra dar um
exemplo.
Bus? Mas eu não tinha colocado legendas em português? |
E a lambança léxica
não para por aí. Tem de tudo nas caixas de diálogo do jogo, desde erro de
ortografia até partes em que a equipe de localização esqueceu de traduzir; personagens com gênero trocado; descrições redundantes de itens e outras
porcalhices mais que eu não me recordo no momento.
Falando agora um pouco
sobre música e parte sonora como um todo. Sabe quando uma trilha sonora te
conquista já na tela de abertura do jogo? Esse é exatamente o caso com Stardew Valley. Antes mesmo do jogo começar e te oferecer as opções de novo jogo ou carregar
arquivo, você já vai entrar no clima de contemplação da natureza que esse tipo
de experiência costuma oferecer.
Não é pecado nenhum
afirmar que as músicas são a melhor surpresa que o criador do game reservou pra
você. Ela, a OST, é tão boa que durante semanas eu coloquei o disco no meu
aparelho de som e fiquei ouvindo durante a execução de tarefas domésticas
corriqueiras, como lavar roupar ou limpeza de casa.
A jukebox opera milagres no seu humor, vai por mim |
Mas o detalhe irônico
nisso tudo é que o disco (em CD) que acompanha o jogo NÃO FUNCIONA NO PS4. Isso
mesmo que você leu: os caras dão uma trilha sonora de um jogo que não roda no
console que executa o próprio jogo. Pra ouvir eu tive que tocar no aparelho de
som...
A trilha sonora de
Stardew Valley causa uma espécie de febre em quem ouve. Você vai sentir uma
vontade absurda de passar algumas estações do ano mais rápido que outras, pra ser embalado por suas
faixas favoritas (as minhas estão na primavera e no verão). Felizmente, pra
sanar essa necessidade, existe uma jukebox no saloon da cidade que dá pra
escolher a música que você quiser ouvir.
“Mas Shadow, nota 10 pro som de um jogo de novo? Desse jeito você já tá
virando uma putinha sem critério mesmo. Se bem me lembro, nos últimos posts
você deu nota máxima pra vários quesitos de alguns jogos, como The Last of Us
por exemplo.”
Sim, nerd troll zueiro
da internet. É fato que antigamente eu nunca dava nota máxima à parte técnica
de jogo algum. Nota 10, a meu ver, era um prêmio onírico que habitava o mundo perfeito das ideias de Platão, e só deveria ser atribuída a jogos que descessem
dos céus montados em uma carruagem celestial soltando raios e chamas.
Só que as pessoas
mudam, e eu não sou diferente. Nos quase sete anos de blog eu acabei mudando
meu jeito de ver as coisas enquanto analista autodidata de games. Antigamente
eu achava que a música de um jogo só merecia nota máxima quando alcançasse o
nível supremo de OSTs como a de Chrono Trigger ou Final Fantasy 8.
Agora eu já não acho que seja bem assim. Todo jogo que cumpra seu papel com a parte sonora/musical,
trazendo uma seleção de faixas inesquecíveis que podem ser ouvidas fora do game
(eu lavei muitas fardas do trabalho e roupas ao som das músicas de SDV nessas
últimas semanas, pode apostar), merece a nota 10 aqui no blog como
reconhecimento de missão cumprida. E a trilha de Stardew Valley só pode ser classificada como algo muito especial por este que vos escreve.
SISTEMA
(7,0)
Stardew Valley é um
jogo misto. Em uma primeira análise, parece se tratar de um clássico simulador
de fazenda, com ciclos de dia e noite, sementes a serem plantadas, regadas e
aplicar adubo para colher (literalmente) melhores frutos. Sobre o passar do
tempo dentro do jogo, vale a observação de que as horas passam muito rápido,
então nada de ir ao banheiro e deixar fora da pausa.
Ao pegar mais
intimidade com as possibilidades oferecidas pelo Vale do Orvalho, você verá que
tem outras coisas a se fazer que não seja descascar batatas e elogiar a torta
de amoras da vizinha: tem artefatos arqueológicos pra escavar; minerais para
coletar; receitas para cozinhar; amizades pra conquistar; trilhares de itens
para comprar; e pasmem: uma mina com centenas de andares (e monstros) para
explorar.
As minas: metade do meu tempo de jogo eu passei nelas |
Também há as missões
secundárias envolvendo os moradores da vila. Elas podem estar relacionadas com
quests do tipo leva-e-traz (só pra farmar um pouco de dinheiro) ou dizerem
respeito aos problemas pessoais desbloqueados com o avanço das amizades. Nessas
ocasiões não há a foto do personagem que você deve atender na tarefa. No
começo eu achava que isso era uma falha, mas depois me dei conta da intenção
dos criadores (eu acho): simular uma cidade pequena onde todos se conhecem pelo
nome, com apenas 28 habitantes.
Depois eu tive certeza
dessa intenção com a primeira quest, “Apresentações”, que te pede pra falar com
cada um dos habitantes do vale. Pra ajudar um pouco a reconhecer os “famosos
quem” no Vale do Orvalho, tem o calendário da loja do Pierre. Ele ajuda a te
lembrar de datas importantes, friendly faces e aniversários de seus amigos e
possíveis interesses amorosos. Nada de celular te enchendo a paciência com mensagens do zap aqui.
Dá pra pescar em praticamente todo lugar com água |
Mas se você acha que Stardew
Valley é uma experiência à prova de estresse é porque não jogou o minigame de
pesca por tempo suficiente. Ele é bastante simples, se comparado a minigames de
pesca de outros jogos que eu já experimentei (como Breath of Fire 4 ou Final
Fantasy 15): é só mirar a sua barra de pesca no peixe, que vai subir e descer
ao longo de uma barrinha vertical.
O problema é que às
vezes ele é injusto e bem frustrante, principalmente se você aceitou o desafio de
pescar os cinco peixes raros. Alguns peixes parecem estar possuídos pelo
espírito do Barry Allen em pessoa, e dão saltos impossíveis de acompanhar com
meras reações sinápticas humanas. Pra piorar, alguns deles parecem evitar,
propositalmente, sua barra de captura do peixe, fazendo o movimento exatamente
oposto pra você perder.
A pedreira: o melhor exemplo de área que não vale o esforço pra desbloquear |
Algumas áreas
bloqueadas são decepcionantes, tanto pelo tamanho quanto pela falta de coisas
novas pra se fazer nelas. São desafios que muitas vezes não compensam o
trabalho que se teve para completá-los. Stardew Valley não é lá muito
competente em recompensar o esforço do jogador com prêmios à altura pelo
esforço despendido (como os peixes lendários, que não garantem nem sequer um
trofeuzinho ao jogador).
Há áreas novas que
chegam ao cúmulo de adicionar apenas uma tela a mais no mapa, sendo que os
requisitos para as desbloquear podem levar literalmente dezenas de horas. Acho desnecessário
dizer que um game com gráficos em 2D não precisa ser gigantesco por causa
disso, mas não custa nada colocar motivos a mais para o jogador continuar se
empenhando a explorar (até porque, até onde sei, não existem DLCs nesse jogo).
OLHANDO A GRAMA CRESCER, COM MUITO PRAZER
Geralmente eu costumo
alertar sobre jogos que você deve evitar caso esteja estressado ou cansado ao
final do dia. Stardew Valley é o completo oposto disso: é um jogo pra quem
esteja, possivelmente, buscando relaxar e esquecer as preocupações da vida. Se
você quer paz, este é o jogo que você procura. Sua simplicidade e beleza nas
tarefas bucólicas deviam ser utilizadas como ferramenta antiestresse em
clínicas especializadas em tratamentos de ansiedade, se é que tais estabelecimentos existem.
NOTA FINAL: 8,4
Sim, é um jogo bem
pequeno em escala, considerando os gráficos de geração antiga que apresenta
(mesmo levando em conta que meu save já passa da primeira centena de horas). Por
outro lado, se você considerar que todo o jogo foi feito por uma única pessoa,
talvez comece a valorizar mais o potencial que uma boa ideia carrega (feita pra ocupar
um nicho vago na indústria) quando bem executada.
Foi olhar a grama crescer, deu nisso |
Stardew Valley é uma
declaração de amor à natureza. “Porra,
Shadow, como você tá piegas hoje”! Eu sei, EU SEI que esse é um baita
clichê pra se usar num texto sobre simulador de fazenda, mas sua simplicidade e
prazer pelas coisas “corriqueiras” do dia-a-dia conseguem nos levam a uma
reflexão bastante genuína, a meu ver. Será que o modo de vida moderno é
realmente o melhor jeito de se viver (spoiler de um formando em ciências
biológicas: NÃO É!)?
Ele não é um jogo que
eu dou play apenas porque gosto. É um tipo de jogo que eu PRECISO jogar, de
tempos em tempos, depois de um dia estressante de trabalho e faculdade, pela
paz que ele proporciona e carrega nos poucos megas que ocupa no espaço do meu
HD de PS4. É a prova cabal de que números, quando alheios a alma e empenho
pessoal, não significam necessariamente um produto de qualidade.
O texto ainda nem acabou e eu já estou com saudade |
Não existem muitos
simuladores de fazenda no mercado. Pra ser sincero, só consigo me lembro de
dois: Farming Simulator, uma série chatíssima de trabalho forçado na fazenda,
criada por pessoas que visivelmente não fazem sexo com muita frequência; e
Harvest Moon, que simplesmente não dá as caras na indústria de games desde a
época do PS2. E tem o Farmville, pra celulares, mas quem se importa?
Sendo assim, aproveite
a chance de jogar Stardew Valley, um jogo feito com amor e diferente da maioria
dos títulos que você vai encontrar no mercado. Se você tem a capacidade de
reconhecer o verdadeiro valor de um jogo, e deixar um pouco de lado a sanha por
gráficos top de linha e ultrarrealistas, fica mais essa indicação de ótimo
jogo.
Au Revoir.
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