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terça-feira, 4 de setembro de 2018

ANÁLISE: STARDEW VALLEY



Desde a transição dos 16 para os 32-bits, na metade da década de 90, eu ouço o mesmo mimimi de que os jogos em 2D estão condenados, que o 3D veio pra substituir qualquer outra perspectiva de câmera, que os polígonos são territorialistas e não aceitam dividir espaço com nenhuma outra técnica de animação.

Deixando bem claro que meu ponto de vista é de quem sempre jogou, majoritariamente, em consoles, eu hei de concordar que essa transição gráfica soou meio que apressada, colocada lá pra gerar hype em cima de um novo e mais atraente produto.

Se você já experimentou jogos como Yoshi’s Island ou Donkey Kong Kountry 2 (ambos do SNES), provavelmente concorda que os sprites ainda tinham muita lenha pra queimar e visuais prá lá de satisfatórios a oferecer.

Não é uma página destacada de um livro de colorir, é um lindo jogo em 2D rodando no SNES

Na atuação geração de consoles, os jogos em 2D parecem ter voltado com força máxima, sob a tutela de um nicho odiado por uns e visto por outros como a última fagulha de esperança criativa num mar de sequências sem personalidade produzidas em ritmo industrial.

Sim, estou falando dos “indies”, diminutivo de jogos independentes. Os indies são pequenas produções, muitas vezes vindos ao nosso mundo por meio de sites de doação ou financiamento de um público cansado da falta de criatividade dos chamados jogos main stream.

Desde a geração do PS2 eu procurei amadurecer como gamer, dando chance não só a jogos com visuais top de linha, mas com uma experiência única que muitas vezes os títulos triple A simplesmente não estão dispostos a me oferecer.

Nunca julgue uma carta pela sua arte

E foi sob essa ótica mais holística que eu descobri Stardew Valley, um simulador de fazenda em 2D com visuais da época do Super Nintendo que vem pra ocupar um nicho praticamente abandonado pelas desenvolvedoras da atualidade.

Será que o jogo consegue compensar seus gráficos “datados” e perspectiva “ultrapassada” para entregar uma experiência de jogo que transcenda tais detalhes técnicos?

Jogos são apenas realismo e contagem de polígonos, ou podem vir embalados em propostas mais modestas com o propósito de despertar sensações no jogador que não sejam o deslumbramento por visuais ultrarrealistas? Essas e outras perguntas serão respondidas na minha análise de Stardew Valley a seguir.


HISTÓRIA (8,0)


Alguma vez você já se sentiu em uma rotina que parece não ter nada a ver com o que você planejou pra sua vida, com uma sensação de que você só trabalha pra ganhar dinheiro pra continuar vivendo e ... trabalhando pra ganhar mais dinheiro? Já aconteceu de parecer que sua vida não está andando pra frente ou evoluindo, e que você faz muita questão por coisas que nem são tão importantes à completude de uma pessoa?

E se você tivesse a chance de deixar tudo isso pra trás e passar a levar uma vida simples no campo, onde sua maior preocupação seria abastecer o curral dos seus animais com feno durante o inverno, programar o plantio com as sementes adequadas para a próxima estação ou criar coragem para chamar aquela pessoa querida pra jantar com você?

Pois é justamente disso que trata o enredo de Stardew Valley. Apesar de se esconder por trás de uma máscara de game despretensioso de afazeres bucólicos, ele faz uma sutil crítica social ao nosso modo moderno de viver, mesmo que em momento algum tente passar sermão ao jogador ou fazer julgamento de valores (mesmo quando aborda temas como consumismo ou má alimentação, por exemplo).

"Você acha que é especial, que as regras de alguma forma não se aplicam a você, Sr. Anderson"?

As telas iniciais do jogo mostram a rotina de trabalho de um completo estranho. Ele está atendendo ligações no call center onde trabalha quando recebe uma carta dizendo que seu avô faleceu. Antes de cruzar a fronteira que separa os vivos dos mortos, ele fez um testamento e o nomeou como herdeiro de uma modesta fazenda no Vale do Orvalho.

Modesta sim, insuficiente jamais: a fazenda deixada pelo seu avô, apesar de não ser a maior localidade do mapa, conta com tudo que você precisa pra sobreviver e tocar sua vidinha no campo: uma estufa (caindo aos pedaços), um pequeno lago pra retirar água, uma grande área para plantações e uma caverna com o potencial de abrigar morcegos ou cogumelos fresquinhos (depende das suas escolhas ao longo da evolução de seu personagem).

Mas nem todos os holofotes do jogo estão voltados a sua pessoa: para os mais de vinte moradores do pequeno vilarejo há um sub-arco a respeito de CADA um dos personagens com os quais você pode desenvolver amizade (seja ela em preto-e-branco ou colorida). As histórias desses personagens secundários são bem envolventes e tratam de vários temas de relacionamento bem delicados, como solidão, problemas familiares, falta de perspectiva de vida, a forma como outras pessoas te enxergam e etc.

Às vezes é exatamente assim que eu me sinto, vovô.

À medida que você vai ganhando a confiança dos moradores (por meio de favores e presentes), detalhes de seu passado vão sendo revelados e cabe a você decidir se quer se envolver mais ou dar meia-volta e bater na porta ao lado.

Como se trata de um jogo de ciclos, meio que sem um final definido, é difícil dizer exatamente o que te espera ao jogar Stardew Valley (mesmo tendo me casado, adotado um filho e enchendo dez coraçõezinhos com uma dezena de pessoas, eu estou longe de conhecer todos os dramas que o jogo tem a oferecer).

Só pra finalizar esse tópico, que acaba ficando meio em aberto, é bem legal concluir as histórias secundárias de alguns personagens (como o mago Rasmodeu) e descobrir alguns dos motivos pelos quais um personagem te trata da maneira que trata. Também rola um momento bem triste envolvendo o avô do nosso personagem e diamantes, mas entrar em mais detalhe seria recair em spoiler, pecado punido com morte e decapitação aqui no meu blog.


GRÁFICOS (8,5) E SOM (10,0)


Dos visuais em si não tem muito o que falar. Apesar de contar com alguns efeitos modernosos para seu estilo visual, Stardew Valley segue o padrão de jogos da era 16-bits. É um jogo feio por causa disso? Claro que não! As fotos capturadas no PS4 não me deixam mentir.

Algumas estações em especial, como o outono e a primavera, são de encher os olhos, te surpreendendo com a forma como um game “datado” visualmente pode despertar um sentimento de contemplação que outros jogos, com contagens de polígonos na casa dos trilhares, não conseguem chegar nem perto.

Como nem tudo são elogios, cabem alguns queixumes que eu não sei se pertencem mesmo a esta parte do texto, mas que preciso soltar de qualquer jeito. A interface do jogo às vezes é meio bagunçada, com comandos se sobrepondo sobre outros (como na hora de organizar os itens no museu de arqueologia).

O Centro Comunitário: fonte abundante de missões

Também há um delay em alguns comandos que irrita e atrapalha um pouco os combates. A interface de seleção de ferramentas e itens de batalha também poderia ser melhor, cabendo ao jogador organizar seus pertences da forma mais conveniente possível a fim de evitar dano desnecessário por vagareza no acesso a itens de cura, por exemplo.

Eu joguei toda a minha campanha (que ainda não terminou, diga-se de passagem) com o idioma do jogo em português. Esse é um ponto positivo do jogo, pois todas as legendas estão traduzidas para o português BR (a despeito da inexistência de diálogos dublados). O problema é que o trabalho de localização parece ter sido feito por uma equipe de estudantes que trabalham meio-período num estúdio de jogos.

Para um louco obcecado por ortografia e espaçamento correto de texto como eu, alguns momentos com Stardew Valley significaram uma verdadeira sessão de tortura gramatical. O resultado final é porco e não demonstra muita preocupação com profissionalismo. O jogo chega ao cúmulo de colocar frases repetidas na mesma caixa de diálogo, só pra dar um exemplo.

Bus? Mas eu não tinha colocado legendas em português?

E a lambança léxica não para por aí. Tem de tudo nas caixas de diálogo do jogo, desde erro de ortografia até partes em que a equipe de localização esqueceu de traduzir; personagens com gênero trocado; descrições redundantes de itens e outras porcalhices mais que eu não me recordo no momento.

Falando agora um pouco sobre música e parte sonora como um todo. Sabe quando uma trilha sonora te conquista já na tela de abertura do jogo? Esse é exatamente o caso com Stardew Valley. Antes mesmo do jogo começar e te oferecer as opções de novo jogo ou carregar arquivo, você já vai entrar no clima de contemplação da natureza que esse tipo de experiência costuma oferecer.

Não é pecado nenhum afirmar que as músicas são a melhor surpresa que o criador do game reservou pra você. Ela, a OST, é tão boa que durante semanas eu coloquei o disco no meu aparelho de som e fiquei ouvindo durante a execução de tarefas domésticas corriqueiras, como lavar roupar ou limpeza de casa.

A jukebox opera milagres no seu humor, vai por mim

Mas o detalhe irônico nisso tudo é que o disco (em CD) que acompanha o jogo NÃO FUNCIONA NO PS4. Isso mesmo que você leu: os caras dão uma trilha sonora de um jogo que não roda no console que executa o próprio jogo. Pra ouvir eu tive que tocar no aparelho de som...

A trilha sonora de Stardew Valley causa uma espécie de febre em quem ouve. Você vai sentir uma vontade absurda de passar algumas estações do ano mais rápido que outras, pra ser embalado por suas faixas favoritas (as minhas estão na primavera e no verão). Felizmente, pra sanar essa necessidade, existe uma jukebox no saloon da cidade que dá pra escolher a música que você quiser ouvir.



Mas Shadow, nota 10 pro som de um jogo de novo? Desse jeito você já tá virando uma putinha sem critério mesmo. Se bem me lembro, nos últimos posts você deu nota máxima pra vários quesitos de alguns jogos, como The Last of Us por exemplo.”




Sim, nerd troll zueiro da internet. É fato que antigamente eu nunca dava nota máxima à parte técnica de jogo algum. Nota 10, a meu ver, era um prêmio onírico que habitava o mundo perfeito das ideias de Platão, e só deveria ser atribuída a jogos que descessem dos céus montados em uma carruagem celestial soltando raios e chamas.

Só que as pessoas mudam, e eu não sou diferente. Nos quase sete anos de blog eu acabei mudando meu jeito de ver as coisas enquanto analista autodidata de games. Antigamente eu achava que a música de um jogo só merecia nota máxima quando alcançasse o nível supremo de OSTs como a de Chrono Trigger ou Final Fantasy 8.



Agora eu já não acho que seja bem assim. Todo jogo que cumpra seu papel com a parte sonora/musical, trazendo uma seleção de faixas inesquecíveis que podem ser ouvidas fora do game (eu lavei muitas fardas do trabalho e roupas ao som das músicas de SDV nessas últimas semanas, pode apostar), merece a nota 10 aqui no blog como reconhecimento de missão cumprida. E a trilha de Stardew Valley só pode ser classificada como algo muito especial por este que vos escreve.


SISTEMA (7,0)


Stardew Valley é um jogo misto. Em uma primeira análise, parece se tratar de um clássico simulador de fazenda, com ciclos de dia e noite, sementes a serem plantadas, regadas e aplicar adubo para colher (literalmente) melhores frutos. Sobre o passar do tempo dentro do jogo, vale a observação de que as horas passam muito rápido, então nada de ir ao banheiro e deixar fora da pausa.

Ao pegar mais intimidade com as possibilidades oferecidas pelo Vale do Orvalho, você verá que tem outras coisas a se fazer que não seja descascar batatas e elogiar a torta de amoras da vizinha: tem artefatos arqueológicos pra escavar; minerais para coletar; receitas para cozinhar; amizades pra conquistar; trilhares de itens para comprar; e pasmem: uma mina com centenas de andares (e monstros) para explorar.

As minas: metade do meu tempo de jogo eu passei nelas

Também há as missões secundárias envolvendo os moradores da vila. Elas podem estar relacionadas com quests do tipo leva-e-traz (só pra farmar um pouco de dinheiro) ou dizerem respeito aos problemas pessoais desbloqueados com o avanço das amizades. Nessas ocasiões não há a foto do personagem que você deve atender na tarefa. No começo eu achava que isso era uma falha, mas depois me dei conta da intenção dos criadores (eu acho): simular uma cidade pequena onde todos se conhecem pelo nome, com apenas 28 habitantes.

Depois eu tive certeza dessa intenção com a primeira quest, “Apresentações”, que te pede pra falar com cada um dos habitantes do vale. Pra ajudar um pouco a reconhecer os “famosos quem” no Vale do Orvalho, tem o calendário da loja do Pierre. Ele ajuda a te lembrar de datas importantes, friendly faces e aniversários de seus amigos e possíveis interesses amorosos. Nada de celular te enchendo a paciência com mensagens do zap aqui.

Dá pra pescar em praticamente todo lugar com água

Mas se você acha que Stardew Valley é uma experiência à prova de estresse é porque não jogou o minigame de pesca por tempo suficiente. Ele é bastante simples, se comparado a minigames de pesca de outros jogos que eu já experimentei (como Breath of Fire 4 ou Final Fantasy 15): é só mirar a sua barra de pesca no peixe, que vai subir e descer ao longo de uma barrinha vertical.

O problema é que às vezes ele é injusto e bem frustrante, principalmente se você aceitou o desafio de pescar os cinco peixes raros. Alguns peixes parecem estar possuídos pelo espírito do Barry Allen em pessoa, e dão saltos impossíveis de acompanhar com meras reações sinápticas humanas. Pra piorar, alguns deles parecem evitar, propositalmente, sua barra de captura do peixe, fazendo o movimento exatamente oposto pra você perder.

A pedreira: o melhor exemplo de área que não vale o esforço pra desbloquear

Algumas áreas bloqueadas são decepcionantes, tanto pelo tamanho quanto pela falta de coisas novas pra se fazer nelas. São desafios que muitas vezes não compensam o trabalho que se teve para completá-los. Stardew Valley não é lá muito competente em recompensar o esforço do jogador com prêmios à altura pelo esforço despendido (como os peixes lendários, que não garantem nem sequer um trofeuzinho ao jogador).

Há áreas novas que chegam ao cúmulo de adicionar apenas uma tela a mais no mapa, sendo que os requisitos para as desbloquear podem levar literalmente dezenas de horas. Acho desnecessário dizer que um game com gráficos em 2D não precisa ser gigantesco por causa disso, mas não custa nada colocar motivos a mais para o jogador continuar se empenhando a explorar (até porque, até onde sei, não existem DLCs nesse jogo).


OLHANDO A GRAMA CRESCER, COM MUITO PRAZER


Geralmente eu costumo alertar sobre jogos que você deve evitar caso esteja estressado ou cansado ao final do dia. Stardew Valley é o completo oposto disso: é um jogo pra quem esteja, possivelmente, buscando relaxar e esquecer as preocupações da vida. Se você quer paz, este é o jogo que você procura. Sua simplicidade e beleza nas tarefas bucólicas deviam ser utilizadas como ferramenta antiestresse em clínicas especializadas em tratamentos de ansiedade, se é que tais estabelecimentos existem.

NOTA FINAL: 8,4

Sim, é um jogo bem pequeno em escala, considerando os gráficos de geração antiga que apresenta (mesmo levando em conta que meu save já passa da primeira centena de horas). Por outro lado, se você considerar que todo o jogo foi feito por uma única pessoa, talvez comece a valorizar mais o potencial que uma boa ideia carrega (feita pra ocupar um nicho vago na indústria) quando bem executada.

Foi olhar a grama crescer, deu nisso

Stardew Valley é uma declaração de amor à natureza. “Porra, Shadow, como você tá piegas hoje”! Eu sei, EU SEI que esse é um baita clichê pra se usar num texto sobre simulador de fazenda, mas sua simplicidade e prazer pelas coisas “corriqueiras” do dia-a-dia conseguem nos levam a uma reflexão bastante genuína, a meu ver. Será que o modo de vida moderno é realmente o melhor jeito de se viver (spoiler de um formando em ciências biológicas: NÃO É!)?

Ele não é um jogo que eu dou play apenas porque gosto. É um tipo de jogo que eu PRECISO jogar, de tempos em tempos, depois de um dia estressante de trabalho e faculdade, pela paz que ele proporciona e carrega nos poucos megas que ocupa no espaço do meu HD de PS4. É a prova cabal de que números, quando alheios a alma e empenho pessoal, não significam necessariamente um produto de qualidade.

O texto ainda nem acabou e eu já estou com saudade

Não existem muitos simuladores de fazenda no mercado. Pra ser sincero, só consigo me lembro de dois: Farming Simulator, uma série chatíssima de trabalho forçado na fazenda, criada por pessoas que visivelmente não fazem sexo com muita frequência; e Harvest Moon, que simplesmente não dá as caras na indústria de games desde a época do PS2. E tem o Farmville, pra celulares, mas quem se importa?

Sendo assim, aproveite a chance de jogar Stardew Valley, um jogo feito com amor e diferente da maioria dos títulos que você vai encontrar no mercado. Se você tem a capacidade de reconhecer o verdadeiro valor de um jogo, e deixar um pouco de lado a sanha por gráficos top de linha e ultrarrealistas, fica mais essa indicação de ótimo jogo.

Au Revoir.

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