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sexta-feira, 2 de agosto de 2019

ANÁLISE: BEYOND TWO SOULS (PS4)























David Cage é uma figura do mundo dos games no mínimo curiosa: ele nasceu na França, em 1969, se destacando como escritor, músico e, claro, na indústria dos jogos eletrônicos como fundador do estúdio Quantic Dream. Sempre à frente dos seus projetos, ele escreve e dirige todas as suas obras, que podem ser considerados mais filmes interativos que games propriamente ditos (o foco não é jogabilidade, e sim story telling).

Na geração do Playstation 2, Cage chamou atenção com Farenheit (ou Indigo Prophecy, dependo do país em que você se encontra), um jogo interativo focado no enredo e com assuntos “sérios” que não costumavam dar muito as caras nos videogames. Além da máxima atenção à história, os jogos da Quantic Dream são bem famosos por causa das suas mecânicas de QTE (quick time events, ou eventos de reação rápida), onde o jogador deve realizar um comando específico que aparece na tela para que a história avance.

Esse é o pai do Origami Killer.

Nos tempos de Playstation 3, Cage ganhou vários prêmios com Heavy Rain, um jogo que segue à risca a descrição acima, só que dessa vez contando um thriller policial no lugar de bizarrices sobre cultistas e tendências tecnológicas dominadoras do mundo (confesso: tenho o Indigo Prophecy mas ainda não criei coragem de jogar). Heavy Rain também veio para cunhar de vez a marca registrada dos jogos de Cage: uma jogabilidade tão ruim e estranha que só podia estar tentando retratar formas de vida de outro planeta.

Sendo o “homem mais inteligente do mundo” ou não, sugando o máximo do potencial que o Playstation 3 tinha a oferecer ou apenas autovanglória gratuita, David Cage ainda presentearia essa geração com mais um game, o Beyond Two Souls. Como quem muda completamente de assunto no meio da conversa, Beyond agora exploraria temas como o sobrenatural e a vida após a morte, com um enredo abarrotado de reflexões sobre a moral humana e alguns dilemas morais que, certamente, serão capazes de fazer o jogador hesitar na hora de inserir os comandos no joystick.

O visual de Heavy Rain impressiona mesmo 9 anos depois.

Beyond Two Souls consegue ser bem-sucedido em sua missão de novelinha interativa à la The Walking Dead, da Telltale? Os problemas de jogabilidade dos jogos anteriores foram sanados neste aqui? E a liberdade oferecida ao jogador, será que dessa vez faz realmente alguma diferença no cômputo final dos QTEs? São essas perguntas que eu pretendo responder no texto a seguir.


UM CORPO, DUAS ALMAS (7,0)


Como eu já adiantei na introdução, toda a razão de ser de Beyond reside no ato de contar uma história pretensamente relevante a quem joga. Este, pelo tipo de jogo que a Quantic Dream costuma nos entregar, é o tópico mais importante do post. Sendo assim, cabem alguns avisos.

Primeiramente, pode ler tranquilo que não haverá qualquer tipo de spoiler no texto. Não que Beyond carregue consigo revelações ou plot twists capazes de transformar seu modo de enxergar a vida (ou a morte). O caso é que Heavy Rain e Beyond (os únicos jogos de Cage que eu joguei até agora) são o tipo de jogo que você, jogador, dificilmente sentirá vontade de encarar mais que uma vez. 

Eu digo isso por experiência própria: joguei Heavy Rain há nove anos, em seu lançamento para PS3, e até hoje não tive vontade de repetir a jogada. Parte desse “enjoo” que você sentirá será por causa do tipo de conteúdo que esse jogo apresenta: uma vez desvendado o mistério, não tem lá muita razão pra “assistir o mesmo filme” duas vezes.

"Eu só tava ouvindo o rádio, seu guarda".

Enrolações feitas, vamos ao enredo: nós controlamos Jodie, uma garota com as feições da Karen Paige que vive na companhia de uma entidade sobrenatural, o Aiden, sobre a qual pouco se sabe. Aiden é como um anjo invisível que toma as dores de Jodie toda vez que algum perigo ameaça a menina, ora sendo benéfico, ora causando medo e insegurança a todos à sua volta (inclusive à própria Jodie).

Jodie, ainda criança, começa a ser estudada pelo governo e pelo exército, se envolvendo com a CIA e outras organizações que querem explorar seu “potencial” para fins militares. A história é contada por meio de flashbacks e eventos atuais da vida de Jodie e Aiden, de uma forma que até deixa dúvidas sobre estarmos controlando a garota no passado ou num tempo presente.

Sonysta desde pequena...

Tenho que confessar que, apesar de muito bem escrita, a história de Beyond não guarda muitas surpresas pra quem já está calejado de ver todo tipo de filme e ler toda sorte de livros/histórias em quadrinhos. Em parte, essa falta de impacto se dá por causa da pouca liberdade que o jogo nos oferece.

Mesmo sendo um game fortemente voltado a escolhas, os criadores castigam os jogadores mais afoitos com todo tipo de amarras pra nos empurrar na direção narrativa desejada: paredes invisíveis, ângulos de câmera que nos empurram para o lado “certo” e QTEs obrigatórios em momentos que, claramente, demandavam maior liberdade de escolha (como na parte da Jodie sendo assediada no barzinho).

Dessa forma, essa falha do jogo acabou se tornando uma das que mais me incomodaram durante minha experiência com o game: Beyond cutuca a nossa ferida com diversos dilemas e possibilidades narrativas, mas não tem coragem de cagar e sair da moita. Por exemplo: qual o sentido de oferecer a opção de dar o fora num suposto afair da Jodie se, uma hora de jogo depois, o enredo vai nos jogar, obrigatoriamente, nos braços do sujeito?

Pera, uva, maçã ou salada mista? Salada mistaaaaaa!!!

Sobre o impacto que o enredo do jogo nos causa, fico feliz em constatar que a Quantic Dream ainda sabe mexer com os mais diversos sentimentos do jogador. Beyond traz um leque de fortes emoções capaz de cutucar até o mais insensível dos jogadores: há muito sentimento de frustração, injustiça, desespero e perda de fé na humanidade pra se ver aqui.

Uma parte que me tocou em especial foi o flashback no qual Jodie é uma moradora de rua. Impossível não sentir na pele o desespero, solidão, frio e sentimento de abandono que uma pessoa nessa situação certamente sentiria na vida real.

Com relação ao enredo, fique tranquilo: David Cage e sua Quantic Dream provam por A + B que jogos como Beyond PRECISAM existir, até como uma alternativa a quem prefere um jogo com um enredo mais elaborado a experiências mais “tradicionais” que a indústria costuma nos entregar.


ALÉM DOS 500 MB DE MEMÓRIA RAM... (GRÁFICOS: 10,0; SOM: 8,5)


Não posso afirmar com relação ao Indigo Prophecy, pois naquela época eu estava mais ocupado jogando Final Fantasy 10 pra prestar atenção nisso, mas desde Heavy Rain a Quantic Dream cunhou a tendência de sugar o máximo que o console da Sony era capaz de realizar. E com Beyond não poderia ser diferente: ele é simplesmente um jogo next gen que insistiu em ser lançado uma geração antes.

Os visuais desse jogo são insanos, simples assim. Parece que é meta desse estúdio fazer o seu queixo cair ainda no menu principal de seus games. As fotos que você vê durante o texto são da versão remasterizada para PS4, mas acredite quando eu digo que a baba escorria pelo meu queixo da mesmíssima forma há nove anos, quando eu joguei o Heavy Rain pela primeira vez no PS3.

O new game mais procrastinado da história dos games.

Eu sei que os menos tolerantes a novelas interativas movidas a QTEs irão argumentar que um jogo que caminha a 0km/h tem mais que a obrigação de entregar visuais divinos, mas seria injusto não dar o devido crédito à mais essa façanha da Quantic Dream. Os visuais de Beyond são tão belos que nos fazem esquecer, por diversas vezes enquanto jogamos, que não estamos vendo um game da geração atual bem na nossa frente.

Infelizmente, o mesmo não pode ser dito da sincronia labial e da movimentação dos personagens. Mesmo contando com atores famosos do nível da Karen Paige e do Willem Dafoe, a Quantic Dream não cria vergonha na cara e nos assalta com animações de personagens andando para um lado enquanto a cabeça olha pra outro; personagens que caminham quando a situação pedem por uma corrida mais apressada; e expressões que simplesmente não condizem com os sentimentos interpretados pelos atores.

Às vezes os personagens parecem robôs entediados, e nem sempre isso é proposital...

O resultado final é uma apresentação que peca em cativar o jogador em alguns momentos cruciais da trama e, por mais de uma vez, resulta em risos e chacotas quando a intenção era sensibilizar ou causar revolta no jogador.

Sobre o som do jogo não tenho muito o que falar. Eu assumi o risco de jogar com legendas e áudio em português, apenas pra comprovar que me depararia com os clássicos problemas encontrados nas já conhecidas dublagens PT/BR: diálogos mornos que beiram o ininteligível e um volume de dublagem que muitas vezes suprime o áudio de excelente qualidade do trabalho original. Mesmo contando com as figuras clássicas que dublam os respectivos atores dos filmes abrasileirados, o resultado final fica muito aquém do esperado para um game desse porte.


AIDEN, DÁ UM JEITO NELES! (4,5)


Os jogos da Quantic Dream são como sorvete de chocolate: se você experimentou um, experimentou todos. Beyond traz a mesma fórmula de Indigo Prophecy e Heavy Rain: você controla uma personagem e precisa “procurar” por bolinhas brancas que representam as possibilidades de interação que Jodie pode realizar.

Já pulando pra parte das pedradas, é incrível como um jogo com a suposta pretensão de fazer o jogador refletir sobre a condição humana consegue te obrigar a realizar as mais banais tarefas que uma pessoa, em seu dia-a-dia, executa de forma mecânica e automática, sem parar por muito tempo pra pensar no esforço que dispende para realizá-las.

Cage e sua obsessão com tarefas sem sentido...

O trailer de Beyond vinha com os dizeres de “no more QTEs”, mas não se engane: apesar da demão de gráficos super bem feitos, é EXATAMENTE isso que você será obrigado a aguentar durante 99% da aventura. Pra piorar, a precisão de alguns comandos ficou completamente prejudicada aqui por causa da subjetividade de algumas ações.

Muitas vezes você vai errar ações evasivas por pensar que o jogo quer que você vá em direção a algum objeto ou pessoa do cenário, quando na verdade você devia ir no caminho oposto. Nos momentos em que a ação fica em câmera lenta, várias vezes você vai ficar sem saber qual a direção correta que deve pressionar no analógico direito, por causa da ambiguidade da cena.

Nessa altura as mecânicas de point-and-click começam a pesar no gameplay.

Quando tomamos posse de Aiden, por meio do botão triângulo, devemos realizar comandos diversos com os dois analógicos do PS3/4. E “nada de QTEs” é o meu rabo, senhor Cage: apesar da falsa sensação de escolha, tudo que nos resta a fazer, quando estamos no controle de Aiden, é procurar por possibilidades de QTEs para fazer Jodie avançar.

Felizmente, meio que ciente dos próprios problemas que carrega consigo, o jogo nos oferece a possibilidade de jogar novamente cada um dos capítulos da vida de Jodie, inclusive num modo onde a progressão se dá de forma mais linear e de acordo com a linha do tempo normal de Jodie.


DA ALMA AO CORPO MATERIAL


David Cage e sua Quantic Dream, apesar dos tropeços, conseguem entregar ao jogador uma experiência diferenciada enquanto jogo eletrônico interativo. Muito embora que, às vezes, falhe miseravelmente em  sua missão, é bastante louvável a tarefa que esses criadores aceitaram de mostrar ao mundo que games podem sim ser obras de arte com uma proposta mais profunda do que apenas acertar tiros em cheio na testa do adversário.

NOTA FINAL: 7,5

Um dedo na ferida dos mais sensíveis...

Pretensões à parte, Beyond Two Souls logra êxito em fazer o jogador refletir sobre a vida e sobre o que torna a nossa jornada nesse mundo algo de valioso, de substancial e carregado de sentido. Muito embora que, pelo menos pra mim, se configurem como viagens apenas só de ida (eu não sinto muita vontade de rejogar esse games, uma vez finalizados), são jogos que nos dão a certeza de que há algo mais a ser visto nessa muitas vezes fútil indústria dos games.

Beleza e tristeza, contemplação e sofrimento se revezam na jornada de Jodie.

E é isso, pessoal. Contradizendo o que acabei de falar no parágrafo acima, depois de recuperar meu fôlego, eu pretendo jogar o Heavy Rain novamente (ele veio junto no pacote com o Beyond e o Detroit, na PS Plus do mês passado) para escrever a análise dele, visto que na época que joguei o Mais Um Blog de Games era apenas um esboço de ideia flutuando na minha mente.

Naturalmente, depois de me abrigar da Chuva Pesada é chegada a hora de me Tornar um Humano mais uma vez e pagar pra ver o que Cage e a Quantic Dream tem a nos oferecer enquanto jogo de novelinha interativa com jogabilidade sofrível.

Até lá e Au Revoir!

2 comentários:

  1. Acho heavy rain um jogo sensacional. Ainda que use dos velhos qtes, mas têm situações que a mecânica é muito bem empregada (como na parte que a jornalista vai na casa do médico, vc sente o frio direto na espinha proporcionado pelo medo de errar as sequências). É bem superior a beyond em quase tudo (menos no gráfico). O final de heavy rain é de cair o cu da bunda.

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    1. Eu acho HR superior em desenvolvimento de enredo, personagens e situações. BTS eu gostei mais da temática, jogabilidade e (claro) gráficos.

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