Há quinze dias chovia e fazia frio em minha cidade.
No começo da semana, um pequeno filhote de siamês albino
apareceu do nada na porta de minha casa, provavelmente abandonada por alguém ou pela própria mãe. Meu irmão mais velho e de coração mais mole a acolheu.
O estado da pequena criatura era deplorável, depois de uma
visita à veterinária ficou constatado não apenas o sexo dela como a sua
situação de saúde: infecção nos olhos, desnutrição e infecção respiratória. E
toda essa carga em cima de um filhote de poucos dias de vida.
Começamos, então, o tratamento: pomada para os olhos;
vitamina C em gotas e um antibacteriano.
A animação da pequena era notória, e se traduzia em pequenas
perseguições a qualquer pessoa da casa aonde quer que ela fosse. A carência por
ter sido abandonada na chuva e com poucos dias de vida chegou ao seu ápice,
quando a filhote se recusava a dormir em qualquer outro lugar da casa que não
fosse na cama comigo ou com meu outro irmão, abraçada em volta do pescoço.
Outra semana começava, e um novo problema surgiu: a
pobrezinha não estava se alimentando por conta própria. Depois de um dia
conseguimos administrar, por meio de um conta-gotas, uma daquelas papinhas para
recém-nascidos que vende no supermercado. Só deus sabe como é difícil, mesmo
que se trate de um filhote, forçar um gato a fazer algo que ele não quer. Mesmo
assim, estávamos conseguindo dar comida três vezes ao dia.
Outra visita à veterinária e ficamos sabendo da necessidade
de alimentá-la de duas em duas horas, e a culpa de estar fazendo a coisa
errada, mesmo sem saber, começava a se apoderar de mim. Outra semana acabava, e
o tratamento era seguido à risca. Mas algo não estava certo.
A pequena que antes corria e miava a plenos pulmões, agora
se mostrava abatida e dormia quase o dia todo.
Os dias não eram fáceis. Precisávamos nos acordar com
frequência para dar comida forçada, remédios e um pouco de aconchego. A única
coisa que acalmava a pobrezinha era o calor de nosso peito, enquanto ela dormia
enrolada em uma toalha de rosto.
Depois de ter trabalhado por quase quinze dias sem um dia de
descanso, minha mente e corpo estavam chegando ao seu limite.
Alguns dias se passaram e, mesmo tomando água e comendo de
duas em duas horas, seu estado só piorava. Mesmo com o rostinho mais limpo; com
seu nariz tendo parado de soltar secreção e com os lindos olhinhos azuis
finalmente aparecendo, a pequenina não dava sinais de melhora.
No domingo que passou, dia 2, pude perceber uma terrível
piora em seu estado. Sua boca quase não se abria, ficando muito difícil para
dar comida. A água, quando descia, fazia a pobrezinha sentir muita dor e
incômodo. Seu estado piorava, e a necessidade de levá-la à veterinária para
aplicar outra injeção de complexo B (para estimular a alimentação e sua vontade
de comer) se fazia urgente.
Meu irmão mais velho voltava de uma rápida viagem, já pela
noite. Fui dormir, de nove horas pois precisava acordar cedo para trabalhar,
enquanto ele se encarregou de dar os remédios e alimentação.
Levantei da cama devido a um pedido de ajuda dele ao meu
outro irmão, por meio de uma frase que vai ficar gravada em minha mente por
toda a vida: “levanta! Eu acho que ela está morrendo!”
O desespero se abateu sobre mim e meus irmãos. As lágrimas
escorriam como escorrem agora, enquanto escrevo estas palavras.
A respiração da pobrezinha alternava entre acelerada e quase
que imperceptível. Só nos restava esperar e acariciar a sua cabecinha para
tentar lhe trazer algum conforto.
Fui para a cama, tentar dormir, sem conseguir me livrar da
terrível visão de um animalzinho sofrendo em sua morte e não poder fazer nada.
Pedi ao meu irmão que a acomodasse no sofá e deixasse a luz acesa. Ele insistiu
em ficar ao lado dela, pois não conseguiria dormir de qualquer forma. Depois da
meia-noite ele não aguentou e foi dormir.
Ao acordar, fiquei sabendo pelos comentários dos meus irmãos
que ela havia, finalmente, falecido.
Dominado por um misto de vergonha, culpa e alívio, levantei
e fui trabalhar. A desculpa de que tinha “gente” doente em casa não ia
funcionar mais uma vez, como havia funcionado no sábado.
No trabalho, ontem, não conseguia me concentrar. Tive que
sair do salão de meu trabalho várias vezes, pois não conseguia parar de chorar.
A tristeza, o medo e a insegurança que só as situações de morte trazem
dominavam o meu espírito.
Um colega de trabalho, tendo me flagrado em lágrimas,
tentava me consolar e entender o que estava acontecendo. Chorando muito,
expliquei da melhor forma que o meu estado de nervos me permitiu. Ele apenas
pediu pra eu não chorar, e que eu tomasse um copo de água. Mesmo quase podendo
sentir o olhar de “tudo isso por causa de um gato”, me acalmei um pouco e
tentei continuar minhas tarefas.
Mais dois colegas meus ficaram sabendo o que acontecia, e
aos três eu fiz a mesma pergunta: “como um deus pode trazer um animalzinho ao
mundo apenas para que ele conheça o abandono, a dor e o sofrimento?”
A melhor resposta que obtive, nos três casos, foi o mais
completo silêncio.
O mais triste de tudo isso, além do sofrimento do animal (e
de tantos outros seres vivos dia após dia), é a arrogância das pessoas em ditar
a quem pode ser direcionado o amor. Na pior das hipóteses, confundem o
sentimento citado acima com coito. Na melhor, acreditam que animais não têm
alma e não têm tanta capacidade de demonstrar amor quanto um ser humano.
Não é de hoje que não sinto a menor simpatia pelo personagem
descrito na bíblia, o Deus católico, evangélico ou que quer que seja. Essa
minha antipatia se já se dava muito antes do falecimento de minha mãe, no ano
de 2004. Então, não vejo sentido em meu discurso ser acusado de ressentimento
pós perda traumática, ou falácia pró-ateísta. Até porque não sou ateu.
Se fosse questionado sobre isso há alguns anos por algum
livre pensador movido pela mais sincera curiosidade, certamente minha resposta
seria: sim, que era um ateu.
Mas não penso assim. Ateu, por definição, é aquele indivíduo
que não crê em nenhuma forma de divindade. Eu não acho que não exista um deus.
Só acho que ele está bem longe de ser aquela criatura benigna formada apenas
por bondade que a bíblia descreve.
Mas eu tenho a certeza de que, se eu fosse um deus benigno
capaz de criar vida, não permitiria que tais coisas acontecessem. Sou um
simples humano e, ainda assim, faço o possível para evitar que elas aconteçam
àqueles que estão ao meu redor.
Existe uma força maior, mas ela deve sofrer uma espécie de
surdez e autismo crônicos, pois se mostra incapaz de dar ouvidos aos gritos de
dor e desespero de uma criaturazinha inocente que Ele mesmo trouxe ao mundo.
Dói. Dói tanto que nem dá pra colocar em palavras. Apenas
queria pedir desculpas aos leitores do blog por fugir completamente da proposta
do mesmo. Queria pedir desculpas também à pequenina, por não conseguir colocar
em palavras todos os sentimentos que senti ao longo desses quinze dias.
Com mais esse golpe fica a lição, à qual provavelmente eu não
dar ouvidos: a de não me apegar tão facilmente às pessoas e aos outros seres; a
de não achar que posso esperar sempre bondade por parte dos outros; a de não me
envolver demais.
A minha pequena luz, que me fazia sentir mais compaixão e
querer ser um ser humano melhor se foi. Se foi sozinha, sem entender nada do
que acontecia e sem poder mensurar o sofrimento que lhe foi jogado nos pequenos
ombros.
Fica a saudade de seu pequeno corpo fazendo peso sobre mim
enquanto dormia. Fica este post, como forma de homenagem e de não deixar que a
sua passagem em minha vida seja esquecida, sem nenhum registro.
A chuva e o frio, ao menos lá fora, finalmente cessaram.
Au Revoir...
Meus pêsames... só quem passou por isso sabe a dor.
ResponderExcluirAi Shadow, que triste... =(
ResponderExcluirMuitas pessoas encaram animais como objetos sem sentimentos e não entendem quando alguém sofre por eles ("tudo isso só por um gato/cachorro"), infelizmente. Mas com certeza a sua pequena ficará pra sempre no seu coração.
Shadow, pêsames cara.
ResponderExcluirPorém fique sabendo que a sabedoria de Deus é loucura para os homens, não vai entender o porque de uma perda sua ou a de um "simples" animal, se tira aprendizado delas e se torna forte, apenas Deus e você sabem o que foi a dor. Pode não acreditar em Deus/Jesus, mas ambos acreditam em ti, um dia, se for a vontade de Jesus, ele vai lhe alcançar.
Antes que pergunte, sim já tive grandes perdas na vida e se não fosse Ele eu teria me acabado.
Sua revolta é justa e me lembrou do paradoxo de Epicuro.
ResponderExcluirShadow, a quantidade de injustiça no universo é imensurável. Felizmente, alguns como você conseguem aliviar essa balança para o lado da bondade e do afeto. Aquele gatinho pode ter tido uma existência curta e sofrida, mas tenha certeza de que graças aos seus esforços ela foi mais longa e mais suportável. Força aí, camarada! Não esmoreça.
ResponderExcluirobrigado a todos pelas palavras de conforto. esses acontecimentos me abalaram de uma forma que jamais pensei que fosse acontecer novamente, visto que já perdi muitos animais de estimação e também pessoas importantes em minha família.
ResponderExcluirRodrigo, muito obrigado pelo apoio. Não consigo acreditar em Deus da forma como os religiosos acreditam, mas respeito a opinião e a religião de todos. religião não pode ser essa coisa tão ruim assim que os ateus pintam, pois uma doutrina que serve para colocar as pessoas em um bom caminho tem que ter uma função na sociedade. por incrível que pareça, já fui evangélico, e gosto muito de alguns dogmas encontrados neste livro. só não admito que me venham com discursos religiosos querendo fazer lavagem cerebral (como as famosas testemunhas de geová), pois sou um homem adulto, de 30 anos de idade que usa muito bem a faculdade que me foi dada pelo próprio criador, a da inteligência e raciocínio.
queria te indicar um vídeo que vi recentemente, antes desse episódio, que fala na hipótese da existência do Deus católico/evangélico. é de um cara declaradamente ateu, mas não se assuste ou julgue mal, pois o sujeito usa argumentos muito respeitosos de acordo com a visão dele de enxergar as coisas. só queria que vc pudesse entender um pouco como eu me sinto com relação a essa questão (http://www.youtube.com/watch?v=QCQskAQ4fJI).
Fernando, esse paradoxo de Epicuro é bem interessante, mas acho muito triste vejo os ateus ficam se esforçando tanto para "provar" que Deus não existe. é por essas e outras que não me considero ateu, pois acredito que estou em um nível mais elevado: eu, diferente deles, tenho a humildade de admitir que não sei se Deus existe. eu não sei o que acontece depois que uma pessoa morre. não sei se existe um lugar melhor ou pior nos aguardando. e não tenho a pretensão de querer convencer ninguém do contrário. cada uma viva a sua vida tentando ser o melhor possível e dando valor ao que deve ser valorizado.
Verei sim Shadow.
ExcluirCara, Ateus lutam para justificar a não existência de Deus, e o povo de Deus não faz nada contra, nada pois tem respeito, só tentam ajudar, nunca prejudicar, claro, digo povo mesmo, não religiosos. Doutrina ou seja, caminho, só existe 1, de Jesus, e está na bíblia, de forma clara, e até com exemplos, nada de subir degraus de joelho, se flagelar, nada disso cara, só ser bom, viver com o bem e propagar o bem, amar cara, só isso, amar.
Li muitos livros, inúmeros videos de outras religiões humanas, ateus e outros para entender como pensam para quando conversar com um tentar oferecer esta semente cara, se for da vontade de Jesus ela cresce mesmo que o próprio ser não queira, só isso, nada de lavagem, nada de forçar, foi isso que foi pedido e isso que tem que ser feito e nada mais.
Deus fala cara, sério, fala mesmo, ele fala como se estivesse ao lado, claro, não com todos, tem que ter fé, por isso da Fé!